quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Espontaneidade

por Gustavo Gitti

“Já que todos os fenômenos
são apenas espectros,
perfeitos sendo apenas o que de fato são,
sem qualquer inclinação para bem ou mal,
aceitação ou rejeição,
podemos realmente gargalhar”
Longchenpa, mestre budista do séc. XIV

Mulheres e mestres de meditação concordam. Quando perguntadas sobre o que faz um bom primeiro encontro, a maioria responde: “Ele tem de ser espontâneo”. Quando indagados sobre a qualidade que surge após muito desenvolvimento espiritual, os mestres são unânimes: “Espontaneidade”.

Veja o vídeo abaixo. Será que ficaremos assim quando descobrirmos espacialidade, luminosidade e ludicidade em qualquer fenômeno?

Espontaneidade, quando em vida adulta, é sinal de algum grave problema – não ter filtro social, por exemplo, e sair andando nu pela rua – ou de muita sabedoria. Aliás, no Budismo, o tipo mais sofisticado de ação sábia e compassiva tem um nome: crazy wisdom (louca sabedoria). Em tibetano, a expressão é yeshe chölwa, sendo que yeshe significa sabedoria e chölwa seria algo como insano, “gone wild” em inglês ou, mais especificamente, sem ponto de referência.

A idéia de viver sem ponto de referência pode significar se mover sem referência alguma. Neste caso, recomenda-se medicamentos e terapia, claro. A mesma idéia também pode significar, por outro lado, viver com a capacidade de transitar entre incontáveis referências, sem fixação por nenhuma delas. A liberdade é a condição de possibilidade da autêntica espontaneidade. Chögyam Trungpa Rinpoche, mestre de Pema Chödrön (atualmente mais conhecida que ele aqui no Brasil), foi o grande propagador dessa abordagem.

Não precisamos de muito esforço para experimentar vislumbres disso. Depois de pouco tempo de meditação, nossa percepção sensorial fica bem mais aguçada. Estou falando de cores, cheiros e texturas, afinal não me interesso por nada extra-sensorial. Cada fenômeno surge de modo mais nítido, límpido. As coisas ficam vivas e coloridas, como se fosse a primeira vez. De fato, todas as coisas surgem dessa espontaneidade primordial a todo momento. Somos nós que embaçamos e descolorimos tudo com nossos monólogos internos e padrões de reação condicionada.

A arte zen é um dos mais claros exemplos de como a espontaneidade pode ser cultivada pelo abandono de nossas identidades e certezas. Todas trabalham com isso à sua maneira: arranjo floral, cerimônia do chá, teatro, pintura, técnicas marciais, caligrafia, poesia. Quem nunca se comoveu com as três simples frases de um haikai? Matsuo Bashô foi o grande mestre nessa arte. Seu haikai mais famoso é (em uma de suas infinitas traduções):

Olha o velho lago –
Após o salto da rã

O barulho da água.

É possível encontrar várias histórias que descrevem em detalhes como um tapa na cara ou um gotejar do telhado fazem surgir a iluminação derradeira em um meditante. Naquele simples momento, toda a estrutura do real é instantaneamente desvelada e o resultado disso é uma enorme gargalhada. É como se nosso casamento de 20 anos fosse precisamente igual a um carro que passa buzinando na rua enquanto meditamos. O som surge do nada, vive por um tempo e logo cessa. Quando realmente estamos abertos, isso é um milagre! Todos os fenômenos são iguais à cena descrita por Bashô: tchibum, zapt, ploft.

Um outro grande exemplo de homem espontâneo é Alberto Caeiro, o mais famoso heterônimo de Fernando Pessoa. Sua poesia é uma celebração da presença lúdica no mundo, aberta ao frescor dos eventos, à “eterna novidade do mundo”. Ser espontâneo é justamente isso: ser “nascido a cada momento”, como ensina Caeiro.

Deixamos cair conceitos e estratégias, deixamos de tentar controlar, ser alguém ou atingir algo. Abrimo-nos ao mundo, sem armas, sem defesas. Desse modo, como não há estratégias por trás, quando surgir uma ação, ela brotará da mesma base que dá luz a cada átomo do universo. As mulheres estão certas: uma noite de amor que não nascer disso, bem, não vale a pena nem começar.

Podemos olhar agora para toda a nossa vida. Acontecimentos, pessoas, histórias, momentos. Por toda parte, não há nada que seja diferente do papel cortado pelo bebê no vídeo. Só que, em vez de gargalhada, surge medo, dor, ansiedade. Ao mesmo tempo, o simples fato de sorrirmos junto com o bebê acima já prova que possuímos essa mesma espontaneidade primordial dentro de nós. Nascemos dela e, sem saber, somos por ela alimentados a cada segundo.

Uma das primeiras descobertas de quem começa a meditar é a de que os fenômenos não são tecidos de modo causal – um levando ao outro, um em cima do outro. Eles pulam diretamente de uma base ampla e livre, um a um, como se fossem (e são) autônomos. Se assim não fosse, a ação livre seria impossível: depois de uma traição, como não sentir raiva e impulso de vingança? Encontrar e surgir a todo instante desse espaço básico, sem agir a partir de coerências passadas, é o nosso desafio para vermos papéis cortados em todas as direções.

Dinheiro, emprego, problemas, crises e amores. É tudo nonsense, é tudo sonho, mistério e diversão. Já é hora, pois, de pegarmos a vida com as mãos e brincarmos sem esconder as gargalhadas.

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"Eu busco aquele olhar que sustentamos após um bom filme, que oferece um espaço de redenção a absolutamente todos os seres. Um olhar sem perspectiva, de lugar algum, e por isso todo abrangente, partindo de todas as direções. Olhar lúcido que compreende toda a tessitura do real, todo o infinito e fractal encadeamento de eventos que produz cada fenômeno, cada mundo.

Eu busco olhar de dentro das pessoas, agir por dentro delas, costurá-las, vestir a transparência do mundo, oferecer vastidão para todos – olhar um ser dando a possibilidade de ele ser qualquer um, oferecendo a liberdade que é sua condição natural. (...)

Eu quero dançar sozinho quando tudo desmoronar. Quero morrer pra sentir o gosto de renascer. Quero sorrir quando tudo der errado. Nadar na merda. Sem esperanças, sem saída, eu quero dar o melhor de mim. Viver sem esperar segundas chances, como um aprendiz de meu futuro." O autor, Gustavo Gitti.

Eu, Cláu, fiquei fã.

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